Todos os dias um motoboy entrega os documentos dos outros. Nesta sexta de manhã, milhares deles foram entregar um único documento: uma pauta de reivindicações contra as recentes restrições à atividade (proibição da via expressa das marginais, do garupa, de motos antigas etc.). O endereço era a sede da prefeitura e o prédio da Câmara Municipal, ambos no centro. A velocidade de 20 km/h da manifestação era bem distante do ritmo frenético desses profissionais.
As comitivas sob duas rodas partiram de todos os quadrantes da cidade, somando 5.000 motos no protesto. Da zona Oeste, começou na avenida Faria Lima, passando pela Rebouças, Consolação até o Vale do Anhangabaú. O ato foi promovido pela Sindimotosp, mas boicotado por outras associações de motociclistas, que vivem racha com acusações de lado a lado, chamando uns aos outros de “sindicatos de gaveta”, “líderes impostores” e “falsos representantes”.
ATO SOBRE DUAS RODAS
O sindicalista Gilberto dos Santos discursa em carro de som em plena av. Rebouças
Com punho no ar, motoboy se manifesta no viaduto do Chá, ponto de concentração
Em comissão, sindicalistas da categoria (centro) entram no prédio da prefeitura
Cerca de 700 motoboys se concentram na frente da Câmara a espera de decisão
Gilberto dos Santos e outros sindicalistas são recebidos por comissão de vereadores
Na liderança, com o microfone na mão e sobre o carro de som que puxava a manifestação, estava Gilberto dos Santos, presidente do Sindimotosp, grupo que promoveu a ação. “Vamos aderir, pessoal. Você perde uma manhã de serviço, e ganha uma vida mais digna”, tentava convencer, acenando para os similares que trabalhavam.
A cada prédio, era uma mensagem particular: “Companheiro do Unibanco, vamos apoiar. A gente carrega contratos milionários e ganha um mixaria. É esse sistema exploratório.” Mais alguns metros e prédios à frente, nova mensagem no carro de som. “Fala para o Juliano e o Rogério liberarem o pessoal para eles irem também”, disparou para dois donos de empresa de entregas perto da avenida Rebouças.
Logo, porém, o sindicalista baiano de 27 anos de idade foi se exaltando. Quando viu um carro de passeio fechar a janela, reagiu: “Aqui é pai de família, não é bandido, não. Não precisa fechar os vidros de seu Audi.” Pouco depois, passou um rapaz com o dedo em riste e gritando `vai trabalhar´, e a resposta foi um buzinaço e o presidente disparando: “Com certeza, já levamos pizza para você, garotão. E é assim que você nos trata.”
O tom de indignação aumentou, e Gilberto atropelou o português e os bons modos em alto, bom e amplificado som. “Nem na guerra do Iraque morre tanta gente. Somos cidadões, somos gente, p… O trabalhador é mandado embora e a família que se f….”
Mais contido, Milton Oliveira tomou o microfone. Orador evangélico, ele acalmava os manifestantes mais afoitos: “Rapaziada, não é para empinar ou acelerar para dar pipoco. A polícia vai autuar, firmeza?” Apesar do alerta, vários foram multados.
“A gente não é o He-Man, mas temos a força. Queremos tíquete-refeição. Chega de marmita e dogão”, se exaltou Milton, que arrematou para os repórteres: “Sei mexer com a massa, sou pregador evangélico”. Ele discursa para contar com o apoio de quem assiste a manifestação nas calçadas ou está preso no engarrafamento.
Para os comerciantes curiosos com o barulho, sentenciou: “Estamos cansados das arbitrariedades desse prefeito. Você lojista apóie nossa causa.” Para os nervosos motoristas nos carros, soltou: “Você que pede uma pizza, um hambúrguer, um talão de cheque, um documento. A gente leva para vocês, mas hoje estamos aqui protestando.”
Quando os discursos paravam, aumentava o som do “Rap do Motoboy”, fundo musical da manifestação. A letra: “Mais um Dia eu Levanto/Está Chovendo/Aquele Espanto/Pista Molhada, Escorregadia/Tira Fina do Carro do Doutor/Ei, Cachorro Louco/Todos os Motoboys/Todo Dia Eu Corro Risco.”
A música é do grupo CR13 MC´s, formado por mensageiros da empresa Help Express, de Moema. “A gente cedeu a música, e eles estão divulgando. Vamos lançar um CD de nove músicas mostrando a realidade vista sobre duas rodas”, diz Carlos Augusto Litvinoff, o Carlinhos, que foi o letrista e está na função há cinco anos.
Atrás do trio elétrico, a “guerrilha motorizada” erguia os punhos segurando o capacete (agora com selo obrigatório do Inmetro), dançava e fazia gestos de rapper, uniformizados com jaquetas estilo “california racing”.
O clima político se manteve com acusações em direção aos outros sindicatos e associações da categoria. Pelo menos quatro delas disputam a supremacia entre os profissionais sobre rodas. No próprio Sindimotosp, o atual presidente só conseguiu tomar o comando após ação do Ministério Público sobre a antiga gestão, de José Brilhante, que não apresentou a prestação de conta da organização.
Os motoboys se mostram também desconfiados com os sindicalistas. Vários deles queriam entrar na prefeitura e na Câmara acompanhando os chefes do sindicato. “Eles são sindicalistas, não vivem o dia-a-dia das ruas, queria subir para falar com o Kassab. Queria perguntar para ele quem vai pagar o leite do meu filho”, reclamou Pedro Luis Victor.
O desagrado se estende com os políticos, apesar da aproximação com o ato. “Político não vai tomar rabeira aqui não. Aqui não é palanque político”, anunciou Gerson Alemão, direto do Sindimotosp. Mas, no final do protesto, o vice-presidente da Câmara, Adilson Amadeu (PTB) e o vereador Abou Anni (PV) subiram no carro de som dos motoboys.
Mas a concentração na frente da prefeitura mostrou uma união semelhante à solidariedade que se vê quando um dos motoboys se acidentam (eles falam em “companheiros caídos”, como se estivessem em uma guerra). “Quando entramos na praça do Patriarca deu uma arrepiada”, confessou o advogado do sindicato, Henrique Resende, que, de terno e gravata, destoava com a indumentária geral. Já Eliezer Santos, coordenador do Canal do Motoboy, site que concentra informação para a categoria, se entusiasmou: “Estamos fazendo história aqui. Nasceu uma força.”